Crítica
"Dentre as características dos seres orgânicos, é possível destacar a forma de sustentação dos seus corpos. No caso dos humanos, temos um endoesqueleto, estrutura interna que se encontra revestida pela carne. No entanto, outros seres possuem um arranjo externo que os protege: revestimento forte, mas flexível que guarda as carnes moles. Cigarras que deixam um molde de seus corpos para trás são um conhecido indício de que esse exoesqueleto pode ser até mesmo descartado. Sobre esse vestígio residual, é possível aferir que ele não é a cigarra, mas que possui uma relação de contiguidade com ela, sendo também o registro de um corpo que já existiu, mas que agora se transformou em outro, rompendo essa antiga casa. Assim, de forma análoga, podemos pensar que peças modeladas a partir de partes do corpo podem remeter aos moldes das cigarras, obras como as que integram essa exposição. No entanto, ainda que o processo de Isabela Picheth produza cascas miméticas, a técnica escolhida dissimula sinais e feições de um corpo específico, indo na direção de uma identidade difusa, na qual o rosto, o gênero e muitas características do corpo molde permanecem em suspensão. Ao utilizar a escultura, a artista retoma a tradição antropomórfica da linguagem, apresentando na escala humana uma série de estratégias de fazer o corpo visível através de fragmentos e de reconstituições, de ações, movimentos e pausas. Os revestimentos por ela produzidos em contato com seu corpo são deixados pelo espaço tal como o exoesqueleto de uma cigarra sobre a grama. Em flerte contínuo com a pintura através da forma quadro e de outras escolhas, seus trabalhos se posicionam num espaço entre, aproveitando-se de ambiguidades e de diferentes estratégias cromáticas: se muitos trabalhos são monocromos brancos, em outros o contraste entre esta cor e o preto ou a madeira contribui para uma expansão da paleta de cores. No caso do uso dos comprimidos, além das discussões que a presença desse material suscita, o trabalho de Isabela ganha uma nova camada de cores: a pele gessada recebe uma outra pele, pontos coloridos que guardam substâncias químicas. Neste sentido, é curioso notar que os comprimidos e pílulas estejam fora do corpo, e não dentro dele. Acredito que seja nesse movimento, esbatendo as fronteiras entre o dentro e o fora, criando formas de apreender o corpo, que Isabela segue produzindo imagens indiciais de algo que não está mais ali, mas que deixa seu vestígio através da forma sempre parcial capturada pelo molde."
RICARDO AYRES
texto da exposição individual de Picheth
"Exoesqueleto" - 2019
"O corpo e as suas múltiplas imagens, comportamentos e materialidades é a essência da produção de Isabela Picheth. Não se trata de um olhar egoístico sobre si ou capacidade criadora, já que a artista também olha para o corpo do outro e o espaço que ocupa, as forças que pressionam e impulsionam. O corpo como problema e como solução, incorporação do sentido, falado e sofrido. Na obra Seja bem vindo, produzida exclusivamente para a exposição Meia Luz, o elemento antropocêntrico avança no corredor do cotidiano, se abrindo para o outro e para si mesmo. Como responder à presença de uma porta, uma abertura de caminhos? Que convites uma forma tão familiar como essa faz ao corpo, às mãos, aos braços? Um convite para passagem ou uma frágil barreira entre si e o desconhecido? E quem está do outro lado? Em Seja bem vindo, o corpo é o ponto de partida, o caminho e o final. É ativador e observador. É a condição para estar presente, presenciar e confrontar."
RENAN ARCHER
texto sobre o trabalho Seja bem vindo
da exposição coletiva "Meia Luz" - 2021
https://rearcher.wixsite.com/portfolio