top of page

Crítica

No papel de alguém que acompanha Isabela Picheth há algum tempo, identifico com prazer os desdobramentos de sua produção, que privilegia a reflexão sobre a corporalidade. Se anteriormente a artista produzia moldes rígidos, principalmente a partir de seu próprio corpo, com o desenvolvimento das peças em silicone suas construções escultóricas passaram a ter outra materialidade: flexível e macio, tal material passou a constituir fragmentos sólidos, como os dedos, e delicadas peles, as quais se relacionam com determinados objetos, estendendo-se sobre sua superfície, atritando-se com outras materialidades.

A artista continua a utilizar o próprio corpo como molde, mas os resultados têm sido bastante distintos. A eleição de tons vibrantes de rosa em muitas peças indica uma desnaturalização da figuração do corpo humano e, simultaneamente, parece manifestar o desejo de Picheth em declinar do branco, cor associada à tradição escultórica, presente em seus trabalhos anteriores com gesso. No recorte apresentado nessa exposição, o branco aparece apenas nos ladrilhos de cerâmica, o único trabalho que não envolve silicone e que é produzido a partir de um único molde.

Antes do rosa e antes do silicone, o espaço e arquitetura já eram evocados em sua produção por meio da criação de situações específicas, muitas vezes associando esculturas e objetos. É possível ver na presente exposição uma série de proposições que tensionam o corpo e o espaço nesse sentido, com especial destaque para o corpo modelado em silicone como superfície e não mais como carne. Ao tornar suas esculturas ocas, Picheth as transforma em peles que causam estranhamento, ao mesmo tempo em que parecem demasiado orgânicas.

Ao escolher manter certas marcas nas peças de silicone, assim como contornos imprecisos das partes que modelou, a artista ressalta não só a particularidade de cada corpo, mas também de cada molde, o que parece desafiar certas convenções relativas à reprodução em série. Cada sugestão do corpo nesses trabalhos é particular, fruto de um processo único e que gera uma peça irreproduzível. O amontoamento e a sobreposição de diferentes cópias em algumas obras é tanto uma repetição de iguais quando a sugestão da unicidade de cada peça. Sua interação com objetos provenientes de membros de sua família, longe de reproduzir um ambiente doméstico, evoca com sutileza uma casa fantasmática, apesar da familiaridade que temos com eles.

Outros trabalhos da mostra parecem distorcer ainda mais a sugestão doméstica: ladrilhos de onde saem dedos e dedos que saem das paredes, assim como peles de partes difíceis de serem reconhecidas reforçam a desorientação diante de uma estratégia que atravessa todos os trabalhos: a partir de uma relação indicial com o corpo, produzir o estranhamento a partir de sua fragmentação e distorção.

Oscilando, então, entre a aparente rigidez das peças sólidas e a maleabilidade de peles que despem a pele e vestem o corpo, Picheth constrói uma investigação sobre a materialidade corporal pela sugestão, seja de uma carne que simula a real consciência de suas limitações, como de uma organização do espaço expositivo que sugere um ambiente parcialmente familiar e ainda assim intrigante por suas particularidades.

                                                                                                                                  RICARDO AYRES

                                                                                              Texto da exposição "Despir a pele, vestir o corpo" - 2023

  

                                                                                                                           

O corpo e as suas múltiplas imagens, comportamentos e materialidades é a essência da produção de Isabela Picheth. Não se trata de um olhar egoístico sobre si ou capacidade criadora, já que a artista também olha para o corpo do outro e o espaço que ocupa, as forças que pressionam e impulsionam. O corpo como problema e como solução, incorporação do sentido, falado e sofrido. Na obra Seja bem vindo, produzida exclusivamente para a exposição Meia Luz, o elemento antropocêntrico avança no corredor do cotidiano, se abrindo para o outro e para si mesmo. Como responder à presença de uma porta, uma abertura de caminhos? Que convites uma forma tão familiar como essa faz ao corpo, às mãos, aos braços? Um convite para passagem ou uma frágil barreira entre si e o desconhecido? E quem está do outro lado? Em Seja bem vindo, o corpo é o ponto de partida, o caminho e o final. É ativador e observador. É a condição para estar presente, presenciar e confrontar.

                                                                                                                                          RENAN ARCHER

                                                                                                                                     Texto sobre o trabalho "Seja bem vindo" - 2021

                                                                                                                                 

                                                                                                                               

Dentre as características dos seres orgânicos, é possível destacar a forma de sustentação dos seus corpos. No caso dos humanos, temos um endoesqueleto, estrutura interna que se encontra revestida pela carne. No entanto, outros seres possuem um arranjo externo que os protege: revestimento forte, mas flexível que guarda as carnes moles. Cigarras que deixam um molde de seus corpos para trás são um conhecido indício de que esse exoesqueleto pode ser até mesmo descartado. Sobre esse vestígio residual, é possível aferir que ele não é a cigarra, mas que possui uma relação de contiguidade com ela, sendo também o registro de um corpo que já existiu, mas que agora se transformou em outro, rompendo essa antiga casa. Assim, de forma análoga, podemos pensar que peças modeladas a partir de partes do corpo podem remeter aos moldes das cigarras, obras como as que integram essa exposição. No entanto, ainda que o processo de Isabela Picheth produza cascas miméticas, a técnica escolhida dissimula sinais e feições de um corpo específico, indo na direção de uma identidade difusa, na qual o rosto, o gênero e muitas características do corpo molde permanecem em suspensão. Ao utilizar a escultura, a artista retoma a tradição antropomórfica da linguagem, apresentando na escala humana uma série de estratégias de fazer o corpo visível através de fragmentos e de reconstituições, de ações, movimentos e pausas. Os revestimentos por ela produzidos em contato com seu corpo são deixados pelo espaço tal como o exoesqueleto de uma cigarra sobre a grama. Em flerte contínuo com a pintura através da forma quadro e de outras escolhas, seus trabalhos se posicionam num espaço entre, aproveitando-se de ambiguidades e de diferentes estratégias cromáticas: se muitos trabalhos são monocromos brancos, em outros o contraste entre esta cor e o preto ou a madeira contribui para uma expansão da paleta de cores. No caso do uso dos comprimidos, além das discussões que a presença desse material suscita, o trabalho de Isabela ganha uma nova camada de cores: a pele gessada recebe uma outra pele, pontos coloridos que guardam substâncias químicas. Neste sentido, é curioso notar que os comprimidos e pílulas estejam fora do corpo, e não dentro dele. Acredito que seja nesse movimento, esbatendo as fronteiras entre o dentro e o fora, criando formas de apreender o corpo, que Isabela segue produzindo imagens indiciais de algo que não está mais ali, mas que deixa seu vestígio através da forma sempre parcial capturada pelo molde.  

                                                                                                                                  RICARDO AYRES

                                                                                                                            Texto da exposição "Exoesqueleto" - 2019

                                                                                                                              

                             

bottom of page